Breve análise acerca do histórico e conceituação dos direitos humanos e direitos fundamentais; das dificuldades em assegurá-los de modo uniforme a todos os povos; da conceituação de globalização ou a opção pelo seu plural globalizações; da contra-hegemonia e da passagem do localismo globalizado para um projeto cosmopolita insurgente; e o que tudo isso tem a ver com a nova era digital.
Direitos humanos e Direitos Fundamentais – afinal, são sinônimos ou não?
Sobre o aspecto histórico dos direitos do homem, é consenso entre os historiadores considerar sua origem nos:
“primórdios da civilização, abarcando desde as concepções formuladas pelos hebreus, pelos gregos, pelos romanos, e pelo cristianismo, passando pela Idade Média, até os dias de hoje”
Rogério Gesta Leal
Enquanto parcela considerável da doutrina considera como sinônimas as terminologias “direitos humanos” e “direitos fundamentais”, outra sustenta o oposto, diferenciando-as assim:
Direitos fundamentais: direitos do ser humano reconhecidos e positivados constitucionalmente em determinado Estado.
Direitos humanos: direitos aplicados a todos os indivíduos enquanto da espécie humana, inerentes em razão de sua própria natureza, independentemente do seu vínculo estatal.
Para Alexandre de Morais, o conceito de direitos fundamentais é anterior à noção de constitucionalismo, que apenas consagrou a necessidade de estabelecer um rol mínimo de direitos humanos em um documento escrito, derivado diretamente da vontade popular soberana.
Em acepção mais restrita, José Afonso da Silva opta pelo uso da terminologia “direitos fundamentais” e confere-lhes apenas os caracteres de historicidade, inalienabilidade, imprescritibilidade e irrenunciabilidade, expurgando os de conotação jusnaturalista (inatos, absolutos, invioláveis e imprescritíveis).
Já em sentido mais amplo, para Manoel Gonçalves Ferreira Filho, tendo em vista que declaração presume preexistência, os direitos humanos seriam, por conseguinte, naturais, além de necessariamente abstratos, imprescritíveis, inalienáveis e, por tudo isso, universais, pertencendo a todos os homens.
Então já fica claro que não há de fato uma uniformidade de definições na doutrina.
Porém, mesmo sem uniformidade do conceito, não se pode negar que os direitos humanos, considerados em seu aspecto mais amplo, se imbuem de um valor universal, atemporal e não espacialmente delimitado, com caráter supranacional, transcendendo, pois, o conceito de nação isolada, o que atende ao fenômeno contemporâneo de mundo global, ainda mais hoje na era da sociedade tecnológica.
Como regular a proteção aos direitos humanos nesse mundo globalizado?
Conforme relembram Nascimento e Accioly, vários foram os instrumentos internacionais que expressaram a necessidade de existir uma cooperação internacional, a fim de regular a proteção aos direitos humanos, podendo-se destacar:
“Carta das Nações Unidas”, de 1945,
“Declaração Universal dos Direitos do Homem”, de 1948,
“Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais”, de 1966,
“Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos”, também de 1966.
Para Lambert, em razão de haver diversos sistemas de proteção dos direitos humanos, e não apenas um único, criados e aceitos pelos Estados, a maior parte deles não são além do que supletivos, uma vez que:
[…] os regimes estabelecidos por lei internacional convencional – ou costumeira – visam normalmente a suprir as lacunas dos Estados e não a instaurar por inteiro a proteção.
Jean-Marie Lambert
Como vemos, essa necessidade de se regular essa proteção aos direitos humanos já existia muito antes de entrarmos na era da sociedade digital. Percebam então como essa regulamentação se torna muito mais necessária e envolve muitos outros vieses nos tempos atuais.
Mas apenas regular os direitos humanos é suficiente?
Então, por tudo que já foi dito, fica fácil perceber que a regulação em si num mundo globalizado e digital já apresenta vários desafios.
Quando passamos do campo da regulação para o da efetivação, a questão se torna ainda mais complexa.
Não basta regular. É preciso que seja cumprido efetivamente o regulamentado.
Assim, dentre os desafios da sociedade hodierna, se encontra não apenas o de definir, delimitar ou justificar os direitos humanos, mas principalmente o de propiciar sua garantia e efetividade, impedindo que estes, não obstante as declarações e tratados internacionais, sejam constantemente violados.
E o que a globalização na era digital tem a ver com isso tudo?
A globalização, ainda mais agora na era digital, tem absolutamente tudo a ver com isso.
Não há que se perder de vista que a globalização, genericamente considerada, por si só agrava o desrespeito aos direitos humanos.
Azevedo assevera que “a globalização, tal como a quer o neoliberalismo, está associada à exclusão social”, tornando-se mais dramática para o setor populacional majoritário.
Assim sendo, justamente a parcela da população mundial que mais precisa ter seus direitos humanos garantidos é a que não integra a lógica do mundo global e tampouco detém os instrumentos de controle.
Desta constatação advém a importância dos movimentos sociais de resistência. E eles agora têm tomado o campo digital.
Globalização ou Globalizações?
Boaventura defende o uso do termo “globalizações”, ao invés de seu singular, porquanto identifica quatro tipologias:
a globalização hegemônica (de cima-para-baixo) seria constituída por dois processos: o localismo globalizado e globalismo localizado,
a globalização contra-hegemônica (de baixo-para-cima) se comporia pelo: cosmopolitismo insurgente e subalterno e pelo patrimônio comum da humanidade.
Na concepção do sociólogo, a globalização hegemônica, sinônima de neoliberalismo globalizado, vem enfrentando resistência através da sua forma contra-hegemônica, desde a década de 1990, sendo esta:
[…] o conjunto vasto de redes, iniciativas, organizações e movimentos […] que se opõem às concepções de desenvolvimento mundial a estas subjacentes, ao mesmo tempo que propõem concepções alternativas”
Boaventura de Sousa Santos
Para ele, a oposição do ativismo trans-fronteiriço e do movimento democrático transnacional é pautada por uma proposta de luta contra a exclusão social e “redistribuição de recursos materiais, sociais, políticos, culturais e simbólicos”, baseando-se nos princípios da igualdade e do reconhecimento da diferença.
E como ocorre a violação dos direitos humanos na globalização da era digital?
A globalização, genericamente considerada, embora considerada por alguns como estagnada, pode ser vista adentrado uma nova fase pautada pelo aumento do fluxo de dados e da informação.
Esse fluxo digital contínuo da nova globalização transmite informação, ideias e dados, permitindo a circulação de bens e serviços e fazendo surgir novos mercados cada vez mais eficientes, pautados pelas infinitas possibilidades da era tecnológica.
A globalização digital trouxe consigo a democratização do conhecimento e do acesso à informação de forma nunca antes vista, mas também inúmeras outras questões jurídicas relacionadas a todo esse novo fenômeno. É preocupante que o arcabouço jurídico da grande maioria dos países ainda não regula adequadamente essa nova realidade.
A partir da globalização da era tecnológica, as violações dos direitos humanos agora ocorrem também em escala global.
Do localismo globalizado para um projeto cosmopolita insurgente
Boaventura afirma que a tarefa central da política emancipatória do nosso tempo consiste em ressignificar não só o conceito dos direitos humanos.
Além disso, deve-se alterar a prática, de um localismo globalizado, que significa o “processo pelo qual determinado fenômeno, entidade, condição ou conceito local é globalizado com sucesso”, para um projeto cosmopolita insurgente, sendo este a “emergência global resultante das articulações/coligações transnacionais entre lutas locais pela dignidade, inclusão sócia autónoma, auto-determinação”.
Para este intuito, muito já contribuía o Fórum Social Mundial, o qual é considerado por Boaventura um novo fenômeno político e a possibilidade de criação de uma política e legalidade cosmopolita subalterna, em razão de ser um espaço de diálogo da humanidade.
Agora com a globalização digital e a possibilidade de comunicação, articulação e coordenação constante e em tempo real e instantâneo de vários movimentos sociais e de organizações da sociedade civil, se tornou muito mais fácil de combinar estratégias e tácticas, de definir agendas, planejar e dar cumprimento a ações coletivas globalizadas e digitais.
A tese de Boaventura a propósito dos direitos humanos reside em considerar que, enquanto concebidos estes como universais em abstrato, tendem a operar como localismo globalizado e, somente sendo reconceituados como interculturais é que poderão operar como forma de cosmopolitismo insurgente, considerando uma tarefa epistemológica a construção de uma concepção intercultural e pós-imperial de direitos humanos.
E a era digital muito pode contribuir para essa ressignificação.
Mera utopia ou a sociedade digital de fato dá força ao cosmopolitismo insurgente e subalterno da globalização contra-hegemônica?
Concordando ou não com a tese acima esboçada, não se pode negar que os direitos humanos clamam por maior eficácia.
Assim, independente da nomenclatura, dos caminhos ou das particularidades que possam ter quaisquer projetos de alteração desse status, o fato é que é necessário que exista uma ação social interligada globalmente, pois no mundo contemporâneo não há mais espaço para se pensar apenas no local ou regional.
Apesar de esta proposta poder ser considerada um tanto quanto utópica, o próprio Boaventura adverte que, para aqueles que assim pensam, este projeto “é certamente, tão utópico quanto o respeito universal pela dignidade humana. E nem por isso este último deixa de ser uma exigência ética séria”.
Então, se há 10 anos atrás ainda era possível questionar a viabilidade de criação e manutenção de ações interligadas de forma global que conferisse voz ao cosmopolitismo insurgente, com o rápido avanço das redes sociais e dos comunicadores instantâneos na última década, não há mais espaço para dúvida.
Mas afinal, o direito está preparado para acompanhar a velocidade da sociedade digital nesse mundo globalizado?
A evolução humana implica no surgimento de novas realidades, necessidades e, conseqüentemente, diversos direitos, devendo também se estar aberto à necessidade de transmudar a própria concepção de direitos humanos para acompanhar a evolução humana natural.
Em suma: a realidade fática muda e o sistema jurídico deve acompanhar essa evolução para que os direitos não fiquem desprotegidos.
O Direito sempre foi conhecido pelos seus ritos e burocracias. Mas a verdade é que os legisladores de todos os cantos do mundo terão uma longa jornada de adaptação para adequar os procedimentos legislativos de criação e revisão, sem que isso implique em violação a outros direitos, igualmente importantes.
O risco que se corre não é apenas o de ter direitos não protegidos pelo sistema jurídico, mas também o de suprimir direitos ao tentar proteger outros.
Embora a ponderação de princípios deva existir, todos teremos que estar atentos para que boas intenções não acabem ocasionando grande prejuízos no futuro.
E com a rapidez com a qual a sociedade digital se move, o desafio agora é ainda maior.
Gostou do tema dos direitos humanos na globalização digital e tem interesse em aprofundar a discussão?
Referências bibliográficas
ACCIOLY, Hildebrando & SILVA, G. E. do Nascimento. Manual de Direito Internacional Público. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
AZEVEDO, Plauto Faraco de. Direito, Justiça Social e Neoliberalismo. 1 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
LAMBERT, Jean-Marie. Curso de Direito Internacional Público: parte geral. 2 ed. Goiânia: Kelps, 2000.
LEAL, Rogério Gesta. Direitos Humanos no Brasil: desafios à democracia. Porto Alegre: Livraria do Advogado; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 1997.
MORAES, Alexandre de. Direitos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 1 ed. São Paulo, 1998.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006.
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