Você tem o hábito de aceitar os termos e condições de uso de serviços e políticas de privacidade sem ler? Saiba como o Código de Defesa do Consumidor pode ajudar.
Se você possui um e-mail, utiliza um smartphone e se alguma vez na vida já instalou um aplicativo, certamente você já se deparou com o momento em que teve que decidir se clica no botão declarando que concorda com os “Termos e Condições”.
É provável que você tenha concordado, afinal, se chegou até ali é porque gostaria de utilizar o serviço. Mas é muito mais provável que não tenha lido todo o teor dos termos de uso e política de privacidade.
Se esse é o seu caso, não se sinta mal, nem sozinho.
A maioria das pessoas não lê os termos e condições
Não é novidade que a maioria das pessoas pula direto para o “Concordo” de termos de uso, política de privacidade, termos de licença e até de contratos online.
Seja porque não cultivamos, no Brasil, fortes hábitos de leitura. Seja porque atualmente vivemos de forma acelerada e sobra pouco tempo e paciência para realizarmos leituras entediantes em uma pequena tela de celular.
Mas isso não acontece só por aqui.
Em 2018, pesquisadores da Universidade York de Toronto e da Universidade de Connecticut conduziram um experimento sobre hábitos de leitura de Políticas de Privacidade (PP) e Termos de Serviço (TDS). O título já dá uma ideia das conclusões do estudo: “The Biggest Lie on the Internet”, algo como “A maior mentira na internet”.
Eles criaram uma falsa rede social e redigiram os termos que os usuários deveriam aceitar antes de assinar, chegando a um resultado preocupante.
A leitura dos textos foi pulada por 74% dos participantes. Dos que abriram os documentos contendo a PP com um tempo previsto para leitura de 29-32 minutos e o TDS de 15-17 minutos, gastaram uma média de apenas 73 segundos para ler a PP e 51 segundos para o TDS. A maioria dos participantes concordou com as políticas: 97% concordou com a PP e 93% com o TDS.
Fica claro que quem chegou a abrir os documentos passou longe de realizar uma leitura completa e, possivelmente, apenas passaram os olhos no texto. O estudo sugere que os participantes vêem os termos como um incômodo e simplesmente os ignoram.
Mas não se pode esquecer que esse tipo de contrato normalmente é elaborado para proteger a empresa de eventuais problemas legais. E estudos como esse só demonstram como os consumidores facilmente estão dispostos a renunciar seus direitos.
Contratos sempre vão ser uma leitura longa, entediante e complicada
Contribui para essa estatística o fato de que os termos e condições são elaborados por advogados, visando a proteção da empresa, e, por isso, com uma linguagem inacessível para boa parte dos usuários.
Além disso, o texto costuma ser grande.
Depois da regulamentação da política de proteção de dados Europeia, introduzida pela GDPR (veja mais sobre a GDPR aqui), que levou as empresas a atualizarem suas políticas de privacidade, houve um aumento médio no número de palavras e no tempo de leitura.
Foi isso que constatou esse estudo de 2018 da Varonis, empresa americana de cibersegurança, sobre “How privacy policies have changed since GDPR”, em tradução livre: “Como as políticas de privacidade mudaram desde a GDPR”, tendo por base empresas como Google, Facebook, Amazon, Twitter, Instagram e Netflix.
O Google, por exemplo, possui um termo de 4.036 palavras, levando 19 minutos e 11 segundos para ser lido. O Instagram, não passa longe, com 4.221 palavras para serem lidas em 20 minutos e 38 segundos.
Outra pesquisa, feita em 2012 pela Carnegie Mellon University, nos Estados Unidos, chamada “The Cost of Reading Privacy Policies”, algo como “O Custo da Leitura das Políticas de Privacidade” (veja aqui), apontou que para ler integralmente o texto das políticas de diversos sites e aplicativos que assina, o usuário levaria, em média 250 horas por ano, o equivalente a 30 dias de trabalho.
A LGPD vai mudar alguma coisa?
Aqui pelo Brasil, com a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados, espera-se que os termos de uso e privacidade das empresas fiquem mais detalhados, e com isso, mais longos e complicados.
Por outro lado, a LGPD trará mais segurança para os dados pessoais e deve trazer mais transparência para os usuários.
Termos, condições e pegadinhas
Como faz parte do senso comum e, claro, das empresas, que quase ninguém se preocupa em ler o que assina na internet, existem histórias de pegadinhas (em inglês “gotcha clauses”) que foram aplicadas nos contratantes despreocupados.
Serviço comunitário
Em uma delas, uma empresa britânica que disponibiliza Wi-Fi grátis em locais públicos inseriu uma cláusula prevendo que para acessar, o usuário aceitava cumprir mil horas de serviço comunitário. As atividades envolviam limpar banheiros públicos ou raspar chiclete de vias públicas. Em duas semanas, foram 22 mil acessos e apenas uma pessoa percebeu a pegadinha.
Sua alma à venda
Há histórias mais bizarras, como a de uma empresa de games que, para comemorar o dia da mentira, inseriu uma cláusula prevendo que o usuário que aceitasse estaria vendendo sua alma para a fabricante do jogo. Havia uma caixa de opção na qual o usuário podia discordar se não aceitasse os termos, não acreditasse possuir alma ou já a tivesse vendido para outra pessoa. Mesmo assim, 7,5 mil pessoas “venderam” suas almas.
Forma de pagamento: à vista, no cartão ou com o seu primogênito
No já citado estudo “The Biggest Lie on the Internet”, 98% do participantes não viram as pegadinhas, que incluíam a previsão de que os dados do usuário seriam compartilhados com a Agência Nacional de Segurança (NSA) e com empregadores, além da absurda previsão de que o usuário deveria entregar à empresa o seu primeiro filho nascido como pagamento!
Deixando de lado as brincadeiras, não é menos verdade que os termos de uso, políticas de privacidade e contratos digitais em geral costumam prever cláusulas capazes de restringir a liberdade do usuário ou reduzir sua privacidade.
A visão patrimonialista do contrato
Título n.º 2:
Pode-se pensar que a partir do momento em que se clica no “Concordo”, todos os riscos deste “contrato digital” são automaticamente assumidos por quem o “assinou”. Que o usuário abre mão do seu direito de reclamar por qualquer problema futuro, ou mesmo por algum uso inesperado de seus dados pessoais.
Mas a questão não é assim tão simples.
Nem mesmo no Direito tradicional, digo isso pensando no Direito sem as adaptações impostas pela Era digital, não se pode tratar o consentimento de forma simplista, na linha do ditado popular brasileiro “Assinou, não leu, O pau comeu”!
Essa ideia sobre consentimento era reflexo do Código Civil anterior (o de 1916), que possuía uma visão patrimonialista dos contratos. Isso significa que o que importava era a liberdade contratual dos particulares (o Estado não deveria intervir nessa liberdade) e a sua manifestação de vontade.
A função social do contrato e a proteção do consumidor
Com a influência da Constituição Federal de 1988, o Código Civil atual (o de 2002) balanceou a rigidez de como era interpretada a manifestação da vontade das partes com a função social do contrato, passando a levar em conta os seus reflexos na sociedade.
Antes disso, o Código de Defesa do Consumidor, de 1990, já havia se preocupado com a vulnerabilidade a que estava exposto o consumidor quando assinava o chamado contrato de adesão.
O contrato de adesão é um tipo de contrato elaborado somente por uma das partes, normalmente a mais forte na relação contratual, como Bancos, construtoras, instituições de ensino. E traz cláusulas prontas, que não estão abertas à discussão pelo consumidor.
Sobre como se caracteriza um contrato de adesão, O CDC prevê:
Art. 54. Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.
§ 1° A inserção de cláusula no formulário não desfigura a natureza de adesão do contrato.
[…]
O CDC também se preocupa em evitar as famosas letras miúdas e cláusulas prejudiciais escondidas no texto:
Art. 54. […]
§ 3º Os contratos de adesão escritos serão redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, cujo tamanho da fonte não será inferior ao corpo doze, de modo a facilitar sua compreensão pelo consumidor.
§ 4° As cláusulas que implicarem limitação de direito do consumidor deverão ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão.
O contrato digital é um contrato de adesão?
Não é difícil perceber que nem sempre as partes que firmam um contrato estão em pé de igualdade.
O mais comum mesmo é que uma das partes receba uma folha impressa com os termos escritos do contrato e tem duas opções. Ou concordar com tudo o que está escrito e assinar ou não assinar e ficar sem o serviço.
O próprio formato do contrato de adesão e a pressão a que o consumidor normalmente é submetido para assinar dificulta a leitura do inteiro teor. E, mais ainda, a discussão das cláusulas previstas, a alteração ou exclusão de alguma cláusula.
Quem nunca se sentiu pressionado ao pegar várias folhas de um contrato escrito em letras miúdas, para ler em poucos minutos e decidir se assina, enquanto alguém aguarda com pressa a assinatura?
Nesse momento, é mais provável que, mesmo que você leia tudo e discorde de alguma cláusula, termine assinando. Até porque, em geral, não se tem conhecimento técnico para identificar uma cláusula prejudicial, por exemplo.
Com o avanço da tecnologia e chegada da Era digital, a forma como contratamos migrou para a internet. Assim, os contratos e termos de uso que assinamos é muito semelhante com a de um contrato de adesão.
O problema do consentimento informado
Além de possuir características de contrato de adesão, o contrato digital tem algumas peculiaridades.
A internet impõe uma distância ainda maior entre a empresa e o consumidor que praticamente inviabiliza a possibilidade de discussão sobre o teor do contrato.
Soma-se a isso:
A sensação de urgência na obtenção do serviço desejado (quem está disposto a gastar 20 minutos lendo termos de serviço para usar a Wi-Fi pública?);
O maior desconforto para realizar a leitura (no celular em vez de um documento impresso);
Constante desrespeito às regras referentes ao tamanho da letra, destaque das partes prejudiciais e facilidade de compreensão;
E o pouco conhecimento sobre o tipo de dados que são fornecidos ao assinar termos e condições.
Contratos digitais e o fornecimento de dados pessoais
O fato é que toda a operação na internet envolve o fornecimento de dados pessoais.
Além disso, carregamos no bolso um dispositivo de vigilância que constantemente coleta informações sobre nossa vida particular: o celular.
Nele instalamos aplicativos que não sabemos direito como funcionam, sendo que alguns acessam localização, fotos, áudio, vídeo, contatos, conversas. E, ainda, não lemos os termos e condições com que concordamos.
É bem como diz a música de Erasmo Carlos:
Que dardos os dados trazem hoje? Tudo é camuflado, sabe? A leiloar no ar Nós e nossa privacidade “Termos e Condições” Erasmo Carlos part. Emicida
Na realidade, lendo ou não lendo os termos e condições, não se sabe como e para que os dados coletados vão ser utilizados. Isto faz com que seja difícil afirmar que o consentimento tenha sido dado com base em informação suficiente.
Então, apesar de voluntariamente ter concordado em carregar esse dispositivo e alimentá-lo com dados pessoais, todos possuem o direito de oposição e defesa contra cláusulas abusivas e práticas que violem a privacidade e proteção de dados.
Gosta do assunto?
Saiba mais sobre direitos à privacidade, proteção de dados e Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) por aqui!
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